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O Império dos Penduricalhos — Parte II

  • Foto do escritor: René Santos Neto
    René Santos Neto
  • 26 de set.
  • 7 min de leitura
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Honorários bilionários, “direitos adquiridos” e a fatura que cai no colo do pagador de impostos


O Brasil amanheceu mais uma vez diante do espelho incômodo dos seus privilégios estatais: a conta de quem trabalha cresce para que a nobreza de crachá mantenha rendas extras, blindagens jurídicas e discursos edificantes sobre “serviço público”. Se na primeira parte deste editorial demonstramos como o estamento burocrático opera como aristocracia de toga e carimbo, travestindo benefícios como “indenizações” e “adicionais” (os famosos penduricalhos), os números mais recentes expõem a fase bilionária desse arranjo — e ajudam a explicar por que o governo precisa ampliar a arrecadação, reclassificar receitas, recorrer a transações tributárias e flertar com aumentos de impostos para fechar contas. O destino do contribuinte é seguir financiando o privilégio. A boa notícia é que, como todo império fundado no extrativismo, este também pode ser desmontado pela luz da transparência e por reformas que restituam limites e responsabilidade fiscal.


A nova temporada do escândalo: bilhões em um único mês


Em julho, os membros da AGU receberam R$ 2,34 bilhões em honorários de sucumbência, num pagamento recorde para pouco mais de 12 mil servidores — e isso após um extra de R$ 1,7 bilhão no início do ano. Somando janeiro a julho, a conta vai a R$ 5 bilhões. Houve caso de repasses médios que orbitam R$ 192 mil a R$ 310 mil em apenas um mês, com o próprio chefe da AGU, Jorge Messias, recebendo cerca de R$ 308 mil só em julho, além do salário. O dinheiro é distribuído por uma entidade privada, o CCHA, cujos conselheiros — pasme — também são beneficiários dos repasses. Uma resolução mantida sob sigilo alterou a base de cálculo para incluir terço de férias sobre honorários e aplicar retroativos, com juros e correção, por fora do teto remuneratório. A cereja do bolo: recomendações de “governança” foram editadas, mas o CCHA pode simplesmente ignorar. Eis o retrato: mais despesas obrigatórias, fora do teto, amparadas por normatizações internas cuja transparência ainda cambaleia.

Se antes chamávamos penduricalhos de “excentricidades administrativas”, agora precisamos encará-los pelo que são: mecanismos de captação de renda institucionalizados dentro do Estado, independentes do desempenho macroeconômico, e parcialmente imunes à disciplina do teto, graças ao uso criativo de retroativos e rubricas de natureza “indenizatória”.


A defesa corporativa: “não é penduricalho, é meritocracia”


À guisa de resposta, a Procuradora-Geral da Fazenda Nacional recorreu ao argumento já conhecido: os honorários “não são penduricalhos”, “estão dentro do teto”, “são tributados”, “estimulam qualificação” e “evitam perda de talentos”. A média recebida pela carreira nos sete primeiros meses de 2025 foi de R$ 410 mil por membro, além do salário — com admissão de que parcelas foram turbinadas por retroativos. Ao mesmo tempo, reconhece-se que encargos recolhidos na dívida ativa alimentam o fundo dos honorários; e, ainda que se alegue desconto de 100% em muitos acordos, a própria entrevista confirma que o modelo depende de receitas que nascem da capacidade de tributar e cobrar — isto é, dependem da força de extrair do contribuinte. O conflito de interesses não é um detalhe acadêmico; é um risco estrutural quando quem negocia a arrecadação também participa do rateio.

Sob o prisma libertário, a tese da “meritocracia remuneratória” com dinheiro compulsório padece de vício original: não há voluntariedade, não há preço emergindo de concorrência, não há horizonte de escolha do financiador. É um “bônus” pago com recursos não consentidos — o oposto do que, num mercado livre, seria um contrato de êxito entre cliente e advogado.


O velho “direito adquirido” como blindagem de privilégios


Quando pressionadas, as corporações acendem o abajur do “direito adquirido”. Mas direito adquirido contra quem? Contra o cidadão que paga? Contra a Constituição que instituiu teto? O “direito adquirido” tem servido como retórica de imunidade para manter a roda dos extras girando, mesmo quando a realidade fiscal — déficits, estagnação, serviços precários — reclame o oposto. O argumento é sempre igual: “está na lei”, “o TCU viu”, “o Supremo chancelou”. O problema é outro: leis podem consagrar privilégios; controles podem falhar; e pareceres “sigilosos” podem fabricar entendimentos convenientes. Não é porque está escrito que é devido. É porque alguém paga — e esse alguém não foi consultado.

Nosso ponto de partida, aqui, não é um moralismo antiprofissional. É a crítica institucional que remonta a Raymundo Faoro: desde a colônia, o estamento burocrático captura o Estado e organiza a economia em torno de suas próprias rendas, vivendo “para” e “do” aparelho estatal. Bruno Carazza atualiza a denúncia, mostrando como os privilégios migram de nomes, mas não saem da folha — eles se recriam em auxílios, bônus, licenças, retroativos, sempre com a mesma finalidade: neutralizar o teto e blindar a casta. Não é acidente — é desenho de poder.


A economia política do privilégio: por que a sua carga tributária sobe


A engrenagem tem um custo manifesto e outro latente. O manifesto aparece na sua fatura: mais impostos, tarifas, taxas e “medidas de arrecadação extraordinária”. O latente corrói produtividade e investimento porque mantém a máquina ocupada com transferência interna de renda em vez de performance e melhoria de serviços. A Folha mostra que a explosão dos honorários anda de mãos dadas com a estratégia de transações tributárias para elevar a arrecadação e cumprir metas fiscais. Em português simples: aumenta-se a extração do contribuinte para alimentar — entre outras despesas — um esquema de bônus que premia quem o cobra.

Daí a hipocrisia nacional: fala-se em “justiça fiscal”, mas quando o cobertor fica curto, sobe IOF, amplia-se a base de incidência, esticam-se contribuições e criam-se “contabilidades criativas” para tapar buracos. Na margem, cada centavo que vai para o CCHA é um centavo que não financia fila de hospital, policiamento, escola, desoneração da folha ou queda de tributos que efetivamente libertem produção e trabalho. O bônus do estamento é o malus do pagador.


“Transparência” e o jogo de cena


Registre-se: o chefe da AGU editou portarias propondo “governança”, painel de dados e até recomendação para não criar retroativos — medidas meritórias, mas não vinculantes. O CCHA pode acatar ou ignorar; e enquanto isso os repasses seguem ocorrendo em volume recorde. A “transparência” vinda depois de pagamentos sigilosos é um tributo retórico à indignação pública: útil, necessária, insuficiente. A regra de ouro de qualquer governo sério é simples: sem transparência prévia e controle externo efetivo, não há bônus, não há extra, não há retroativo.


O argumento libertário: salário, teto real e nenhum centavo a mais


O diagnóstico libertário é direto:

  1. Advocacia pública é função de Estado; sua remuneração deve ser salário único submetido a teto efetivo — sem honorários de sucumbência, sem retroativos, sem entidade privada rateando recursos de origem tributária.

  2. Resultados institucionais (maior recuperação de créditos, melhor defesa da União) devem produzir benefícios para o contribuinte, não bônus pecuniários para carreiras. Se há ganhos de eficiência, que se revertam em redução de carga tributária, menos litígio, menos judicialização.

  3. Conflitos de interesse precisam ser proibidos em lei: quem negocia transações que impactam a arrecadação não pode ter qualquer participação no produto indireto dessas transações.

  4. Transparência radical e auditoria externa: todos os pagamentos, critérios e bases de cálculo devem ser abertos em tempo real, com auditoria independente obrigatória e controle do TCU e do Congresso — não “recomendações”.


O “direito adquirido” e a moral das reformas


Reformas não são retroescavadeiras no passado; são marcos para o futuro. “Direito adquirido” não pode servir de abrigo para perpetuação de privilégio que fere o interesse público. O único “direito adquirido” universal é o do contribuinte a não ser expropriado por dentro do orçamento. A medida correta é: respeita-se o que foi pago, extinguem-se as bases normativas que reproduzem o benefício; e, daqui em diante, salário único, teto real, sem atalhos. Qualquer outra solução é ilusionismo contábil.


Faoro, Carazza e o fio que não rompe


Faoro nos lembra que não é de hoje que a burocracia brasileira se autoprotege; Carazza demonstra que a técnica substituiu a toga do privilégio por fórmulas administrativas. O que mudou não foi o objetivo — foi o manual do privilégio. Por isso, o combate não é contra pessoas, mas contra arranjos institucionais que permitem extrair riqueza sem voto, risco, concorrência e prestação de contas. A cada portaria “bem-intencionada”, o sistema cria uma resolução “sigilosa”. A cada discurso de austeridade, a fatura volta com juros. A cada promessa de “governança”, um conselho privado dá a última palavra — e a conta cai na sua porta.


O começo do fim do império


O Brasil não precisa de cruzada moralista; precisa de limites, simplicidade e liberdade. Limites: teto remuneratório verdadeiro, sem retroativos e sem exceções. Simplicidade: fim de bônus e “indenizações” que servem de bypass ao teto. Liberdade: menos extração fiscal, menos judicialização, mais acordos que reduzam litígios e tributos, e um Estado que cabe no bolso de quem produz.

Enquanto continuarmos premiando quem está do lado de dentro da máquina, quem está do lado de fora — você — continuará pagando. A hora é de apertar o interruptor da transparência, cortar a energia do privilégio e religar o circuito da responsabilidade. O resto é retórica — e a retórica, como sabemos, não ilumina a conta de ninguém.


Leituras e evidências:


  1. Santos Neto RS. O Império dos Penduricalhos: Como o Estamento Burocrático Sufoca o Brasil com Privilégios. O Inquiridor. 2025.

  2. Folha de S.Paulo. AGU: bônus a servidores paga R$ 2,34 bi em julho. São Paulo: Folha de S.Paulo; 2025 Sep 03.

  3. Folha de S.Paulo. Honorários da AGU não são penduricalhos, diz procuradora. São Paulo: Folha de S.Paulo; 2025 Sep 25.

  4. Faoro R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo; 2001.

  5. Carazza B. O país dos privilégios. São Paulo: Companhia das Letras; 2023.

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