O fio brasileiro do xenotransplante
- René Santos Neto
- 1 de out.
- 5 min de leitura
De Petrópolis a Curitiba, da ideia de tolerância à cirurgia de fronteira

Fonte: Imagem gerada por IA
Há uma linha fina, quase invisível, que costura a ideia à execução, o laboratório à sala cirúrgica, o país periférico à fronteira tecnológica. Essa linha, no caso do xenotransplante, tem sotaque brasileiro nas duas pontas. De um lado, a intuição genial de um jovem nascido em Petrópolis: Peter Brian Medawar, o homem que ensinou a medicina a não pensar o sistema imune apenas como um inimigo a ser calado, mas como uma inteligência a ser convencida. Do outro, a mão firme de outro brasileiro, curitibano de origem, Leonardo V. Riella, levando para o leito humano um rim suíno geneticamente editado — e, com ele, uma promessa de que a fila da insuficiência renal crônica talvez não precise mais ser a metáfora da espera infinita. Não é ufanismo; é genealogia intelectual e técnica. O fio que começa na tolerância imunológica, no pós-guerra, reaparece no século XXI em uma mesa de cirurgia que olha para o futuro e não pisca.
Medawar mudou a gramática da imunologia ao mostrar que tolerância se aprende. Em vez de esmagar linfócitos indefinidamente, o objetivo passa a ser educá-los, modular coestímulos, transformar o estranho em tolerável. O xenotransplante radicaliza essa lição: como convencer um organismo humano de que um órgão de outra espécie pode ser aceito sem se autodestruir na tentativa? A resposta contemporânea combina engenharia genética e farmacologia de precisão. Porcos “TKO”, que silenciam epitopos carboidratados como α-Gal, Neu5Gc e Sd(a), deixam de acionar a tempestade inicial de anticorpos naturais; genes humanos inseridos amortecem complemento e trombo-inflamação; e a clínica adota bloqueadores de coestimulação — com destaque para o eixo CD40–CD154 — buscando impedir a segunda senha da ativação linfocitária. É o mesmo princípio, atualizado: tornar o enxerto menos provocativo e o sistema imune menos beligerante. No papel, isso é elegância conceitual; na prática, é o que separa uma prova de conceito de um programa assistencial.
É aqui que o trabalho de Riella e de sua equipe vira símbolo. Os protocolos translacionais que culminaram nos primeiros transplantes renais suínos em humanos vivem precisamente dessa gramática: edição genética para baixar o volume do perigo, coestímulo bloqueado para que a conversão imune não desande, e vigilância meticulosa sobre o que mais importa — a interface endotelial onde compatibilidade, coagulação e inflamação decidem o destino do enxerto. O que alguns leem como façanha técnica é, na verdade, coerência histórica: o Brasil aparece duas vezes nessa narrativa, no conceito fundador e na execução de fronteira. E isso nos coloca diante de uma pergunta incômoda e necessária: queremos ser apenas origem e vitrine ou também plataforma e destino dessa tecnologia?
O Brasil conhece de perto o drama da escassez de órgãos. Somos, com razão, celebrados por manter o maior programa público de transplantes do mundo, ancorado no SUS, e estamos entre os maiores volumes globais de procedimentos. Esse é um capital moral e institucional raríssimo. Mas liderança pública não se converte automaticamente em protagonismo na próxima fronteira. Xenotransplante exige regulação específica, infraestrutura laboratorial capaz de operar imunologia de precisão como rotina — não como exceção —, e uma política industrial que pare de tratar a biotecnologia como assunto de terceiro setor. A retórica do “acesso universal” só se sustenta se o país também disputar a propriedade intelectual, a capacidade de produzir insumos complexos, a formação de gente, a padronização de protocolos e a leitura crítica dos custos reais. Caso contrário, seremos usuários tardios, pagando caro por tecnologias que ajudam a contar, mas não a construir.
É evidente que há prudência a cultivar. Xenotransplante não é atalho milagroso, é caminho longo, auditável. Envolve zoonoses potenciais, incertezas sobre rejeição crônica, dilemas éticos no uso de animais geneticamente modificados e uma economia da saúde que precisa comparar alternativas com honestidade. Mas prudência não é sinônimo de paralisia. O modo adulto de avançar é fasear protocolos, publicar dados brutos, manter comitês independentes com poder real de vetar ou corrigir rumos, e incorporar ferramentas de vigilância genômica para que nenhum risco circule invisível. Walter Bagehot dizia que o crédito é a confiança em estado monetário; a ciência pública, quando bem feita, é a confiança em estado institucional. O Brasil precisa aprender a comunicar o xeno sem sensacionalismo e sem eufemismo: explicar por que o bloqueio de coestimulação importa, por que reduzir epitopos evita tempestades de anticorpos, por que trombo-inflamação é a pedra no sapato, por que Tregs podem ser mais do que um conceito de revisão. Em suma, transformar uma narrativa técnica em um contrato social compreensível.
Há também uma dimensão de soberania que O Inquiridor não se furta a dizer com todas as letras. Se um brasileiro inaugurou a doutrina da tolerância e outro ajuda a levá-la ao leito no século do CRISPR, por que aceitar um papel permanente de importadores de suínos editados e anticorpos monoclonais produzidos fora? O país que monta o maior esforço público de transplantes deveria ser aquele que organiza a primeira força-tarefa nacional de xenotransplante: Ministério da Saúde, Anvisa, CFM, sociedades científicas, universidades e hospitais de excelência em um mesmo diagrama, com metas claras para guias regulatórios, critérios de seleção, centros sentinela e acordos internacionais de pesquisa e propriedade intelectual. De preferência com prazos e orçamentos assinados, para que o debate não se dissolva em seminários e notas oficiais.
Não se trata de abandonar a doação humana — que continuará sendo a espinha dorsal do transplante —, mas de admitir que ampliar o cardápio terapêutico salva vidas e economiza sofrimento. Cada paciente que deixa a fila porque recebeu um xenoenxerto funcional é um paciente que descomprime o sistema e devolve trabalho, renda e dignidade a si e à família. O cálculo econômico é relevante, mas o cálculo humano é inapelável. A pergunta verdadeira não é se devemos fazer xenotransplante, mas como e quando faremos, sob quais salvaguardas, com quais custos explícitos e com qual partilha de riscos e benefícios. E, sobretudo, quem vai escrever as regras: se serão terceiros, lá fora, ou nós, aqui, de forma cooperativa e transparente.
Há um último ponto, talvez o mais político de todos. O Brasil acostumou-se a celebrar medalhas isoladas e a olvidar a pista onde elas foram conquistadas. A história Medawar–Riella é um lembrete de que ideias e execuções excepcionais florescem melhor onde há ecossistemas que as mereçam. Isso significa carreira científica com previsibilidade, contratos que recompensam a excelência, compras públicas que não punem o melhor, regulação que protege o paciente sem asfixiar o pesquisador, e universidades que chamam a indústria pelo nome certo: parceira de risco, não vilã por default. O sucesso do SUS em transplantes prova que sabemos operar programas complexos em escala. O desafio agora é aprender a operar fronteiras tecnológicas com a mesma maturidade, sabendo que a melhor política social é aquela que começa como política científica bem desenhada.
No fim, é simples de dizer e difícil de fazer: o xenotransplante é a prova de que um país pode ser ao mesmo tempo generoso na assistência e ambicioso na ciência. Temos o enredo, os personagens e a memória afetiva para contar essa história. Falta escrever o próximo capítulo com a caneta certa: a que assina protocolos, financia plataformas, regula com agilidade e presta contas em voz alta. Quando isso acontecer, não será exagero afirmar que a tolerância nascida em Petrópolis e a ousadia treinada em Curitiba deixaram de ser metáforas para virar política de Estado. E então, talvez, poderemos olhar para a fila do transplante renal e dizer, com serenidade e sem bravatas, que o futuro do rim fala português — e que a ciência brasileira, finalmente, ocupa o lugar que sempre mereceu.
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