Inter 2 e a miopia da mobilidade: quando a cidade cava buracos e perde oportunidades
- René Santos Neto
- 8 de out.
- 6 min de leitura

Curitiba construiu sua reputação global como laboratório de mobilidade ousada. Mas a reputação venceu por WO a entrega recente. O Novo Inter 2 — anunciado como o maior investimento em mobilidade urbana da história local — está atrasado, remendado por rescisões e, sobretudo, desalinhado de uma visão integrada de cidade. O que se vê no canteiro é mais obra do que mobilidade; mais promessa do que desempenho; mais centralização do que parceria. E quando a Prefeitura confunde quilômetro de asfalto com quilômetro de acesso, a conta chega em congestionamento, insegurança ao pedestre e produtividade perdida.
A narrativa oficial apresenta um programa monitorado pelo BID, com US$ 106,7 milhões do banco e US$ 26,7 milhões de contrapartida municipal. O material da Prefeitura fala em 38 km de requalificação viária ao longo dos trajetos do Inter 2 e Interbairros II, beneficiando 181 mil passageiros/dia em 28 bairros, com salvaguardas socioambientais, indicadores e “missões de acompanhamento” técnico-financeiro. No papel, a governança parece impecável — e a comunicação institucional enfatiza visitas de especialistas, cronogramas de desembolso, licitações e monitoramento social. Tudo correto, tudo polido, tudo distante do chão irregular por onde o cidadão tenta caminhar ou esperar o ônibus que não vem.
O contraste entre a vitrine e a calçada é gritante. Reportagem-opinião do Brasil de Fato detalha rescisão do Lote 1, atrasos, canteiros abertos, buracos sem proteção, vazamentos de água próximos a hospitais e um cenário de “obra interminável” — o déjà-vu da Linha Verde. A peça registra críticas a metas de ganho de tempo pouco realistas (a famosa economia “de até 30 minutos” no percurso total) e cobra transparência técnica: quem faz o trajeto inteiro de uma linha circular, que sai e volta ao mesmo ponto? A pergunta não é retórica: qual é o problema exato que o Inter 2 resolve, para qual público e com que métrica de sucesso? Sem clareza de objetivo, obra vira fim em si mesma.
A miopia não é recente. Em 2017, a própria Prefeitura pediu ao governo federal redirecionar R$ 1,8 bilhão originalmente reservados ao metrô para concluir a Linha Verde, requalificar o Inter II, implantar o Ligeirão Norte/Sul e outras conexões. A justificativa era pragmática: metas atingíveis, entrega rápida, multiplicação de efeitos. O saldo, oito anos depois, é um mosaico de frentes abertas e entregas parciais — uma cidade que sempre está quase pronta. O passado explica o presente: quando a prioridade oscila entre modais e eixos sem um marco de resultados (tempo porta-a-porta, custo por passageiro transportado, segurança viária por milhão de km viajados), a gestão vira cronograma, não política pública.
Do ponto de vista da experiência do usuário, a Universidade Federal do Paraná adicionou evidência onde a retórica costuma improvisar: caminhabilidade “suficiente” tendendo ao fraco em trechos centrais, tempo de semáforo para pedestre de 13 a 15 segundos em travessias longas, iluminação deficiente, segurança pública e viária com notas “insuficientes” em segmentos analisados. Em termos práticos: de que serve requalificar o itinerário de linhas circulares se o acesso a pé até o ponto — o primeiro e o último km — continua hostil, mal iluminado e perigoso? Mobilidade é cadeia; o elo mais fraco define a viagem.
O problema de fundo: obra sem visão, gasto sem competição, gestão sem incentivo
A crítica libertária a esse arranjo não é um exercício ideológico; é economia básica aplicada ao espaço urbano:
Centralização e risco moral — Quando o Município concentra o desenho, a contratação, a fiscalização e a comunicação, surgem incentivos para otimizar a obra, não o serviço. O sucesso passa a ser “quilômetros entregues”, “lotes licitados”, “missões concluídas”, e não minutos poupados, acidentes evitados, satisfação do usuário. O que se mede é o que se faz.
Baixa accountability por desempenho — Não há contratos com pagamento atrelado a metas operacionais (headways garantidos, regularidade, redução de tempo porta-a-porta, nível de serviço para pedestres e ciclistas no entorno). A multa por atraso puniu empreiteira específica no Lote 1, mas quem representa o usuário para exigir desempenho diário, não só cronograma?
Aversão a competição — A cidade trata operadores e construtoras como fornecedores cativos e não como concorrentes por desempenho. Sem concorrência por resultado, a inovação é cosmética e a produtividade, lenta.
Cálculo estratégico equivocado — O Inter 2 reapresenta a velha solução “canaleta + requalificação viária” como bala de prata, mas, num sistema com alta dispersão de origem-destino e mudança estrutural do trabalho pendular, linhas circulares longas são candidatas naturais a irregularidade e atraso. Sem redesenho de oferta, complementação com serviços on-demand e integração tarifária real, a obra vira substituto de gestão.
O que os dados sugerem — e o que a Prefeitura não entrega
Os números oficiais (38 km, 181 mil passageiros) têm densidade de marketing, não de política. Se 181 mil passageiros/dia são impactados, quais são as metas público-compartilhadas de:
redução de tempo médio (não o “até 30 min” genérico) por trecho e por período do dia?
queda de acidentes e atropelamentos no corredor e no entorno?
aumento de caminhabilidade medido por indicador padrão (por exemplo, iCam, já usado pela UFPR) para raios de 400m em torno de cada estação/ponto requalificado?
ganho de confiabilidade (percentual de viagens dentro da janela de 3 minutos do programado)?
Sem isso, as “missões de monitoramento” do BID viram checklists processuais — importantes, mas insuficientes para garantir que a rua entregue o que a nota técnica promete.
Do lado da sociedade, os relatos de interdição prolongada, comércio prejudicado, calçadas destruídas e rescisões exigem outra pergunta: onde está a matriz de risco e compensação? Grandes obras urbanas no mundo moderno indenizam automaticamente negócios e moradores afetados por paralisações além de marcos contratuais, e publicam planos de mitigação semanais com metas de reabertura de frente por frente. Em Curitiba, seguimos no modo “aguente firme que vai melhorar”.
E, enquanto a retórica oficial celebra “cidade inteligente”, a UFPR mede semáforos espartanos que forçam idosos e pessoas com mobilidade reduzida a correr para não serem colhidos por carros em vias de alta velocidade. A Prefeitura não precisa de dólar do BID para acrescentar 10–15 segundos de verde para pedestres, padronizar rampas, iluminar esquinas e podar árvores que quebram calçadas. Isso é gestão cotidiana, não obra-âncora.
Um plano de mobilidade que a cidade reconheceria como seu
Se a Prefeitura quer virar a página dos atrasos e do descrédito, três mudanças são inadiáveis:
1) Contratos por desempenho (e não por quilometragem). Reformule os contratos para que 50% do pagamento aos operadores e empreiteiras esteja vinculado a metas mensuráveis: regularidade de serviço, tempo porta-a-porta, redução de sinistros, nota de caminhabilidade no entorno, satisfação do usuário. Auditoria independente, dados abertos em tempo real e bônus/malus mensal, não discursos semestrais. Isso alinha incentivo privado com interesse público.
2) Concorrência por gestão e microrrede sob demanda. Integre o Inter 2 a um leque de serviços complementares (linhas alimentadoras flexíveis, vans de bairro, bicicleta pública, car-sharing), concedidos por áreas com competição periódica. O Município deixa de “operar por decreto” e passa a regular por metas. O usuário escolhe; quem entrega melhor fica — precificação dinâmica e integração tarifária digital completam o circuito.
3) Prioridade aos elos fracos (calçada, travessia, segurança). Adote o iCam ou equivalente como KPI oficial para o raio de 400m dos pontos do Inter 2; publique metas trimestrais de iluminação, largura útil, acessibilidade e tempo de travessia. Enquanto o corredor não fica pronto, condicione medições de avanço físico a entregas de caminhabilidade já auditadas. O passageiro precisa chegar até o ônibus com segurança e conforto, ou a obra é um tapete sobre vazio.
A lição de 2017 que não aprendemos
Quando Curitiba pediu para migrar R$ 1,8 bilhão do metrô para obras “mais factíveis”, abriu-se uma janela para reinventar a governança da mobilidade: PPPs por desempenho, descentralização, dados abertos como regra. Oito anos depois, seguimos apertando o mesmo parafuso — mais canaletas, promessas circulares, metas difusas. O resultado está nas fotos: canteiros desertos de manhã, anúncios exuberantes à tarde. Isso não é “cidade inteligente”; é obrascentrismo.
Conclusão: de “obra inteligente” a mobilidade verificável
Curitiba não precisa de mais slogans; precisa de um contrato social claro:
a Prefeitura compra desempenho, publica dados, compensa afetados e prioriza o pedestre;
o setor privado concorreria por resultados, não por aditivos;
o cidadão deixaria de ser paciente para ser cliente da cidade — com indicadores que mudam sua vida (minutos, segurança, conforto), não apenas seu feed.
O Novo Inter 2 ainda pode virar nova mobilidade. Para isso, é preciso inverter a lógica: obra é meio, resultado é fim. Enquanto a gestão correr atrás de cronogramas, os curitibanos continuarão correndo atrás do sinal verde de 13 segundos — e perdendo a travessia mais importante: a que leva de uma cidade que cava buracos para outra que abre caminhos.
Referências:
– Prefeitura de Curitiba. BID acompanha avanços do Projeto Novo Inter 2 em Curitiba (investimento, governança, extensão e público atendido).
– G1 Paraná. Prefeitura de Curitiba quer direcionar dinheiro do metrô para outras obras (histórico do redirecionamento de R$ 1,8 bi).
– Brasil de Fato. Novo Inter 2: remake da novela da Linha Verde? (rescisão de lote, atrasos e impactos locais).
– Ciência UFPR. É fácil caminhar por Curitiba? (método iCam, notas de caminhabilidade, tempos de travessia e segurança).
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