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O AI-5 do Judiciário e o 31 de Março da Toga

  • Foto do escritor: René Santos Neto
    René Santos Neto
  • 1 de ago.
  • 4 min de leitura
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“A maior tragédia da liberdade é que ela precisa ser constantemente defendida contra aqueles que dizem protegê-la.”— Friedrich Hayek

A história brasileira parece marcada por uma estranha ironia: seus momentos de ruptura institucional mais profundos são sempre embalados por discursos que dizem proteger a democracia. A derrubada de Goulart, em 31 de março de 1964, foi justificada como reação à ameaça comunista. O Ato Institucional nº 5, em 1968, veio como resposta à desordem civil e à “insubordinação” do Congresso. Nos dois casos, o antídoto para o caos foi o arbítrio. A exceção se fez regra. A ordem democrática, suspensa — em nome de si mesma.

Décadas depois, já sob a moldura constitucional de 1988, vemos a repetição de um mesmo roteiro. Desta vez, não mais sob o comando de generais fardados, mas vestida de toga, sentada no Supremo Tribunal Federal e amparada por uma imprensa que trocou a vigilância pelo aplauso.

Em 14 de março de 2019, o então presidente do STF, ministro Dias Toffoli, instaurou de ofício o Inquérito nº 4781, hoje célebre como o “Inquérito do Fim do Mundo”. Sem provocação do Ministério Público, com relator designado à margem do sorteio regimental, o inquérito nasceu para investigar “notícias falsas, ameaças e infrações contra a honorabilidade do STF e seus membros”. Na prática, tornou-se o braço repressivo do Supremo — uma espécie de Serviço Nacional de Informações togado, onde os ministros acumulam as funções de vítima, investigador, promotor e juiz.

A lógica é conhecida: instaura-se um inquérito excepcional para combater um inimigo excepcional. Em 1964, o inimigo era o comunismo. Em 2019, o inimigo passou a ser o “discurso de ódio”, a “desinformação”, os “ataques às instituições”. Assim como os militares, o Supremo justificou a exceção em nome da salvação nacional. Assim como os militares, passou a legislar, censurar, punir e reformular a vida política do país sem qualquer mediação democrática. O Inquérito 4781 é, sob a ótica conservadora, o “31 de Março” da era judicial.

“Em tempos de exceção, a lei deixa de ser regra para se tornar instrumento de poder.”— Carl Schmitt

Mas toda ruptura precisa de um clímax. Em 1964, esse clímax foi o AI-5. No século XXI, ele viria em 8 de janeiro de 2023.

Naquele domingo, as imagens da invasão às sedes dos Três Poderes correram o mundo. Manifestações desastradas e criminosas — que jamais devem ser relativizadas — tornaram-se o pretexto perfeito para consolidar o regime de exceção iniciado em 2019. Prisões preventivas em massa, censura de veículos de mídia, bloqueios financeiros, inquéritos infindáveis e uma nova definição de crime: o “ato antidemocrático”, termo elástico o bastante para enquadrar da pichação à opinião política.

Tal como o AI-5, o 8 de janeiro consolidou a concentração de poder em uma única instância, agora não mais no Executivo, mas no Judiciário — e mais precisamente, no gabinete do ministro Alexandre de Moraes.

O que antes era uma exceção, tornou-se regra. O STF não apenas julga; ele define quem pode disputar eleições, o que pode ser dito, quais redes sociais podem operar. Sob o manto da “defesa da democracia”, desenha-se um novo sistema, onde a soberania popular é supervisionada por um poder sem freios e sem rosto público.

“A democracia é o regime em que os governantes têm medo do povo. Quando é o povo que tem medo dos governantes, o nome disso é outra coisa.”— Norberto Bobbio

Se o AI-5 censurou jornais e fechou o Congresso, o AI-5 da toga não precisa tanto. Ele atua cirurgicamente, com decisões monocráticas, algoritmos, bloqueios e relatórios de inteligência. A censura é seletiva. A repressão é jurídica. O arbítrio é digital.

A comparação entre os episódios não é literal, mas simbólica — e, por isso mesmo, potente. Assim como a democracia foi desmontada aos poucos entre 1964 e 1968, ela vem sendo anestesiada entre 2019 e o presente, sob o aplauso dos que deveriam alertar: juristas, jornalistas, intelectuais. O novo regime não é militar. É judicial. Não se anuncia com tanques, mas com despachos. Não precisa de AI-5, pois a exceção foi naturalizada.

Nos anos 1970, bastava um jornal ser fechado, um artista censurado ou um professor exilado para que vozes da universidade, da imprensa e da cultura clamassem contra a repressão. Hoje, o silêncio é ensurdecedor.

Aqueles que se dizem “guardas da democracia” adotaram o silêncio cúmplice ou a adesão entusiasta. Jornalistas investigativos deixaram de investigar; passaram a replicar sem contestar os vazamentos seletivos oriundos de gabinetes do Supremo. Intelectuais que antes exigiam o devido processo legal hoje celebram prisões arbitrárias como atos de justiça histórica. Universidades que deveriam ser bastiões da liberdade de expressão produzem estudos para justificar algoritmos de censura.

A imprensa, ao invés de fiscalizar, transformou-se em órgão de propaganda do novo poder. Quem ousa apontar abusos é acusado de golpismo. Quem questiona decisões judiciais é rotulado como inimigo do Estado de Direito. Quem duvida da imparcialidade da Corte é tratado como criminoso em potencial.

Esse comportamento não é novo. Em todos os regimes de exceção, há uma elite esclarecida que escolhe servir ao poder em nome de uma causa superior. Ontem foi a luta contra o comunismo. Hoje é o combate à “desinformação”. O nome da ameaça muda, mas o mecanismo é o mesmo: convencer a sociedade de que a repressão é um ato de amor à democracia.

A pergunta que fica é simples: por quanto tempo a democracia sobrevive quando seus próprios defensores se recusam a defendê-la de verdade?

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