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Do EPCOT a Curitiba: o futuro das cidades planejadas e o desafio de evitar o engessamento urbano

  • Foto do escritor: René Santos Neto
    René Santos Neto
  • 9 de ago.
  • 5 min de leitura
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“As cidades têm o direito de sonhar.” — Jaime Lerner


“As cidades nunca devem estar concluídas.” — Walt Disney


O fascínio pela cidade perfeita


Desde que os gregos imaginaram Atlântida e Platão descreveu sua Kallipolis, o ser humano vem tentando desenhar a cidade perfeita. Ora como um exercício filosófico, ora como um projeto arquitetônico, ora como um experimento social, a utopia urbana reaparece em cada geração com novas tintas: ruas amplas, transporte impecável, tecnologia de ponta, harmonia entre homem e natureza.


No século XX, um nome improvável se aventurou nesse território: Walt Disney. Mais conhecido por ratos falantes e princesas de conto de fadas, Disney também era um planejador urbano frustrado. Seu projeto mais ousado não envolvia castelos ou montanhas-russas, mas sim uma cidade real, viva e funcional: o EPCOT — Experimental Prototype Community of Tomorrow.


Essa “cidade do futuro” jamais se concretizou como planejado. Mas sua ideia ecoa até hoje em projetos futuristas espalhados pelo planeta — e, de forma mais sutil, até no Brasil. Curitiba, com seu planejamento urbano reconhecido internacionalmente, é uma espécie de laboratório vivo de ideias centralizadas. A diferença é que, enquanto EPCOT morreu na prancheta, Curitiba sobreviveu — e agora enfrenta o desafio que toda cidade planejada enfrenta: não se transformar num museu do próprio passado.



EPCOT: a utopia corporativa que não nasceu


Em 1966, pouco antes de morrer, Walt Disney apresentou ao público e ao legislativo da Flórida um vídeo em que descrevia sua visão para o EPCOT. Era algo sem precedentes: uma cidade radial com cerca de 20 mil habitantes, organizada em anéis concêntricos. No centro, um edifício monumental de 30 andares, abrigando hotel, centro de convenções, lojas e entretenimento. Ao redor, zonas comerciais e residenciais, intercaladas por cinturões verdes.


O transporte seria futurista: monotrilhos para percursos longos, PeopleMovers elétricos para curtas distâncias, e ruas livres de carros na superfície. A tecnologia não seria apenas exibida — seria testada em escala real. Cada casa, cada loja, cada sistema seria atualizado constantemente, num ciclo perpétuo de inovação.


Mas havia um detalhe: ninguém seria dono da própria casa. Os moradores viveriam em imóveis pertencentes à Disney, e ficariam lá enquanto trabalhassem na cidade. EPCOT seria, na prática, uma empresa onde todos também eram habitantes. Uma mistura de condomínio corporativo com laboratório urbano.


Após a morte de Walt, a equipe considerou o projeto impraticável. A Disney construiu o Walt Disney World, mas o EPCOT virou, em 1982, um parque temático. A cidade que “nunca estaria concluída” jamais começou.


As novas “cidades do futuro” do século XXI


O fascínio por um espaço urbano perfeitamente controlado não morreu com Walt. No século XXI, surgiram novas tentativas, algumas com cifras bilionárias.


The Line — NEOM (Arábia Saudita): Uma cidade linear de 170 km no deserto, sem carros, com trens de alta velocidade e edifícios espelhados. População prevista: 9 milhões. Controle: 100% estatal. Críticas: custo astronômico, riscos ambientais e viabilidade questionada.


Telosa (EUA): Idealizada por Marc Lore, ex-CEO da Walmart.com. Quer abrigar 5 milhões de pessoas no deserto americano, com transporte autônomo, energia limpa e propriedade comunitária da terra. Objetivo declarado: “a cidade mais justa do mundo”.


Masdar City (Emirados Árabes): Começou em 2006 como cidade 100% sustentável e livre de carbono. Avançou pouco; hoje abriga empresas e universidades, mas muito aquém do plano inicial.


Songdo (Coreia do Sul): Construída sobre terras recuperadas do mar, com sensores em todo o sistema urbano, gestão digital de tráfego e coleta de lixo pneumática. Moderna, mas criticada por falta de vida cultural espontânea.


Todos compartilham elementos do EPCOT: controle centralizado, tecnologia como motor, e a promessa de eficiência absoluta. Mas também carregam o mesmo risco: transformar-se em vitrines rígidas, incapazes de absorver a complexidade orgânica da vida urbana.


Curitiba: o laboratório brasileiro


Curitiba não nasceu de um magnata do entretenimento nem de um príncipe do petróleo. Seu plano diretor, implantado em 1965, foi produto de um núcleo técnico-político: o IPPUC, comandado por Jaime Lerner.


A lógica era simples e genial: organizar o crescimento da cidade em eixos estruturais, onde transporte coletivo e adensamento caminhariam juntos. Criar um sistema de BRT (Bus Rapid Transit) com canaletas exclusivas, terminais integrados e pagamento antecipado — décadas antes de outras cidades imitarem o modelo. E preservar áreas verdes não apenas como lazer, mas como barreiras contra enchentes, criando parques lineares.


Nos anos 1980 e 1990, Curitiba virou referência internacional. Era “cidade modelo”, “capital ecológica”, capa de revistas de arquitetura e urbanismo. Assim como EPCOT pretendia, ela foi um laboratório vivo — mas aberto, com propriedade privada e participação popular limitada, mas existente.


A crítica: quando a engrenagem começa a travar


O problema das cidades planejadas é que, com o tempo, o plano original se torna dogma. Curitiba ainda vive da glória passada, mas já não lidera o debate urbano como antes.

• Transporte sobrecarregado: O BRT, joia da coroa, sofre com lotação crônica, envelhecimento da frota e falta de integração com novos modais.

• Crescimento periférico desordenado: O plano diretor não conteve a expansão para áreas distantes, aumentando a dependência de transporte longo e caro.

• Infraestrutura envelhecida: Calçadas, terminais, praças e equipamentos urbanos demandam renovação.

• Participação cidadã insuficiente: Revisões do plano diretor tendem a ser técnicas e pouco acessíveis à população.

• Acomodação política: A reputação internacional virou um álibi para não inovar.


Assim como EPCOT corria o risco de se engessar por excesso de controle corporativo, Curitiba sofre com o excesso de apego à fórmula que um dia funcionou.


Como aperfeiçoar o modelo curitibano


Se Curitiba quiser voltar a ser referência global, precisa se inspirar não apenas no EPCOT de Walt, mas no seu espírito: a cidade que nunca está concluída.

1. Governança adaptativa: Criar revisões do plano diretor a cada 5 anos, com processos participativos reais, presenciais e digitais.

2. Transporte multimodal: Integrar o BRT a VLTs, ciclovias interligadas e veículos elétricos autônomos de bairro.

3. Tecnologia urbana: Uso de sensores para semáforos inteligentes, iluminação adaptativa, gestão de resíduos com IoT e aplicativos públicos integrados.

4. Adensamento inteligente: Incentivar repovoamento do centro, uso misto de edifícios e requalificação de áreas subutilizadas.

5. Cooperação internacional: Participar ativamente de redes como C40 Cities e ICLEI para trocar experiências e testar soluções importadas e exportadas.

6. Cultura e identidade: Evitar que a cidade vire só um “case técnico” e fortalecer vida cultural, uso criativo de espaços públicos e arte urbana.


A utopia possível


O EPCOT de Walt Disney prometia uma cidade que nunca estaria concluída. Morreu no papel. Curitiba, ao contrário, nasceu, cresceu e virou modelo — mas corre o risco de envelhecer sem ousar.


A lição que une EPCOT, The Line, Telosa e Curitiba é simples: planejamento centralizado é útil para nascer, mas a sobrevivência depende de adaptação constante. Uma cidade que não muda deixa de ser laboratório e vira peça de museu.


“Curitiba não precisa ser EPCOT, mas precisa ser tão ousada quanto Walt foi na prancheta — e mais hábil do que ele na execução.”


Se quisermos cidades vivas, teremos de abandonar a ilusão de que elas podem ser “finalizadas”. Cidades não são obras concluídas: são conversas intermináveis entre o que sonhamos e o que vivemos. O desafio é manter essa conversa aberta, mesmo quando o aplauso do passado ainda ecoa.

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