O que o House faria? Depois que a série de TV arrasa-quarteirão "House M.D." estreou, em 2004, essa se tornou uma pergunta corriqueira em discussões clínicas de diversos hospitais pelo mundo afora. O paradoxal médico, viciado em codeína, se tornou um hit no meio médico. Um pouco por conta de suas condutas nada ortodoxas, um pouco por sua personalidade única, e muito por sua genialidade. Mas House, como médico, só poderia existir nos Estados Unidos da América, em um sistema baseado na alta tecnologia e na pujança de recursos. Caso ele cruzasse a fronteira para o Canadá, ele seria execrado por ser um médico que não cultiva a relação médico-paciente, por gastar milhares de dólares em exames inúteis e por destroçar relações em equipes médicas e multiprofissionais. Por todo esse paradoxo que envolve sua conduta médica e pessoal, House é atraente. E atrai, porque House expressa na essência o adágio maquiavélico "os fins justificam os meios". Independente dos riscos e das dificuldades que House pode criar ao paciente na busca pelo diagnóstico, o que vale é que ele consiga chegar à conclusão de seu raciocínio clínico e, por consequência, ao tratamento mais eficaz.
As velhas séries médicas estadunidenses, notadamente Dr. Kildare (estelada por Richard Chamberlain), eram seriados que exploravam a figura benevolente e paterna do médico, como um modelo de pessoa e de conduta pessoal, que representava a velha dicotomia "mocinho-bandido": o médico deveria ser um mocinho em todos os aspectos, desde como se portar perante a sociedade bem como em sua conduta médica, não ultrapassando limites éticos e seguindo os preceitos hipocráticos. Outras séries médicas mais modernas, como "E.R.", já começaram a mostrar uma figura mais humanizada e frágil do médico, como alguém que também sofre e tem seus conflitos internos. Mas House foi além: o personagem central é a expressão do anti-heroi, do gauche, ou seja, alguém que foge dos padroes de correção e postura de nossa sociedade. E por ser torto na vida é que House impressiona. Porque mesmo convivendo com uma dor lancinante em sua coxa direita (compensada parcialmente com muito Vicodin), com uma rabugice que deixa aqueles que trabalham próximos das raias da insanidade e com uma personalidade pétrea, quase que megalômana, House acaba por atingir seus desfechos. Sua capacidade de dedução e intuição quase sherloquianas (os produtores de House se inspiraram na criação do torto médico no famoso detetive criado por Sir Arthur Conan Doyle, que também era médico) são os pilares que tornam a série tão cativante para os seus fãs.
Mas comentemos a face médica de House. O que House representa é aquilo que temos vontade em certos momentos de nossa conduta médica: de mandar tudo às favas e bater de frente com os pacientes e com nossos chefes para chegarmos ao nosso objetivo. É mais ou menos como se quiséssemos despertar o Maquiavel que existe dentro de nós. Quem, ao assistir House, nunca teve vontade de fazer como ele, fugir do plantão estressante cheio de infecções respiratórias agudas e gastroenterites para ir buscar o diagnóstico daquele caso difícil que está na enfermaria? Quem nunca teve vontade de "invadir" a casa dos pacientes para buscar elementos para sustentar a história clínica do paciente? Ah, e quem nunca teve vontade de pedir "MRIs" (ressonâncias magnéticas) à vontade como o paradoxal médico estadunidense? No final das contas, House é um pouquinho daquilo que queremos ser. De não ter limitações e medos para buscar nossos objetivos.
Na vida real não podemos e não devemos ser como House. Mas temos que ter um pouco de House dentro de nós. Medicina, além de arte, é feita de inspiração e intuição. E House, por mais hi-tech que seja, é o amálgama entre a tecnologia e a arte médica. É a união entre a tecnologia de ponta e a intuição médica, que jamais será suplantada pela inteligência artificial. Afinal, de nada adianta termos o exame mais sofisticado, a imagem mais detalhada, se não houver um profissional capaz de interpretar e correlacionar as informações geradas eletronicamente em seus dados clínicos. Não devemos temer a tecnologia; devemos sim é adaptá-la à nossa realidade para aprimorarmos a arte, a nossa arte, a Arte da Medicina.
*Artigo publicado originalmente na Edição nº 23 da Revista Íatrico (CRM/PR), em novembro de 2008.
Foto: Dr. House - autor anônimo (Divulgação)
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