Economia em Arritmia: Uma Fisiopatologia do Estado Moderno
- René Santos Neto
- 15 de ago.
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Se o Estado fosse um paciente, não seria o triatleta que se submete a um check-up anual apenas para reafirmar o próprio vigor. Seria, antes, o idoso com múltiplas comorbidades, que chega à emergência em franca dispneia, pele fria, taquicardia irregular e histórico médico mais volumoso que a Constituição. A história clínica revela anos de maus hábitos — dietas orçamentárias desequilibradas, abuso de substâncias tributárias, sedentarismo inovador —, intercalados por crises agudas tratadas com medidas heroicas, porém paliativas. O prontuário revela que o paciente não morre da crise: morre da negligência entre uma crise e outra.
É nesse contexto que a medicina e a economia se encontram. Ambas estudam sistemas complexos, regulados por delicados mecanismos de feedback, que precisam de equilíbrio dinâmico para funcionar. E ambas produzem gráficos que revelam verdades incômodas. Tome-se, por exemplo, a Curva de Frank-Starling: até certo ponto, quanto maior o enchimento ventricular — a famosa pré-carga —, maior o débito cardíaco. A lógica é simples: fibras musculares mais esticadas contraem com mais força, até que o excesso as deixe frouxas, incapazes de gerar pressão adequada. É o ponto em que o coração, saturado, já não responde. Agora, substitua “pré-carga” por “taxa de impostos” e “débito cardíaco” por “arrecadação”: eis a Curva de Laffer, que todo economista conhece. Ela ensina que a carga tributária pode subir até um ponto ótimo; dali em diante, a arrecadação cai, seja pela fuga de capitais, pela informalidade ou pelo simples colapso da atividade produtiva. Corações e governos doentes cometem o mesmo erro: confundem estímulo com solução e acreditam que empurrar mais volume para dentro do sistema trará sempre mais resultado.
Quando o corpo percebe que a pressão arterial cai, os rins disparam o alarme bioquímico: liberam renina, que inicia a cascata do Sistema Renina-Angiotensina-Aldosterona (SRAA). A angiotensina II, vasoconstritora potente, estreita os vasos, enquanto a aldosterona retém sal e água, elevando o volume circulante e a pressão. É um mecanismo de emergência, projetado para ganhar tempo até que a causa da hipotensão seja resolvida. No Estado, há um SRAA econômico: quando a arrecadação despenca ou a recessão ameaça, o governo contrai as “arteríolas regulatórias” aumentando impostos, retém recursos via emissão monetária e injeta estímulos fiscais para empurrar a pressão econômica para cima. O problema é idêntico: o que salva no curto prazo mata no longo. Ativado de forma crônica, o SRAA biológico causa hipertensão, sobrecarga cardíaca e remodelamento; o SRAA econômico, quando permanente, leva à inflação, ao endividamento e à erosão da base produtiva.
O remodelamento cardíaco é uma tentativa mal-sucedida do coração de se adaptar ao excesso de carga. Inicialmente, o ventrículo hipertrofia para gerar mais força; com o tempo, dilata, perde forma e função, tornando-se ineficiente. Na economia, esse remodelamento se chama inflação. Não a oscilação fisiológica e tolerável dos preços, mas a elevação persistente, que muda as regras do jogo: contratos perdem referência, salários perdem valor real, investimentos de longo prazo se tornam apostas de curto prazo. O coração remodelado bombeia menos sangue; a economia inflacionada produz menos riqueza real. Ambos adaptam-se ao patológico, até que a próxima descompensação — seja uma crise cambial ou uma fibrilação ventricular — imponha uma intervenção drástica.
A inflamação crônica é outro paralelo instrutivo. No corpo, a inflamação é uma reação de defesa, mas quando persiste, passa a destruir o próprio tecido. Na macroeconomia, a emissão monetária descontrolada cumpre papel semelhante: começa como resposta legítima a um choque — guerras, desastres, pandemias — e termina corroendo a confiança na moeda, alimentando expectativas negativas e gerando um ciclo autossustentado de desvalorização. A história fornece abundantes casos clínico-monetários: a febre inflacionária da República de Weimar, que começou para pagar dívidas de guerra; a necrose monetária do Zimbábue, iniciada por crises agrícolas e políticas; a inflamação persistente da Argentina, que parece ter se tornado parte da fisiologia nacional. Em todos, um gatilho agudo foi seguido por uma resposta inflamatória crônica e destrutiva.
Se na medicina a terapêutica é vasta, na economia também há um arsenal. Os vasodilatadores, que no corpo reduzem a resistência vascular e facilitam o trabalho cardíaco, encontram seu análogo na desburocratização e simplificação regulatória, que aumentam o fluxo de capital e investimento. Os diuréticos, que drenam excesso de volume, equivalem à austeridade fiscal, cortando gastos e reduzindo déficits. Os inotrópicos positivos, que aumentam a força de contração, são os estímulos diretos à produção — investimentos em infraestrutura, subsídios à inovação. Os betabloqueadores, que protegem o coração do excesso de esforço e melhoram sua eficiência a longo prazo, correspondem à disciplina fiscal: reduzir o ritmo de gastos para preservar a função. Os IECA e BRA, que modulam o SRAA e previnem remodelamento, equivalem às reformas estruturais: tributária, administrativa, previdenciária. Anticoagulantes, que previnem trombos, são a regulação prudencial do sistema financeiro, evitando crises sistêmicas. Estatinas, que previnem entupimentos arteriais, são os investimentos em educação e tecnologia, prevenindo a obstrução da competitividade. E, para emergências, há os vasopressores: na fisiologia, noradrenalina; na economia, injeções de liquidez do Banco Central para evitar colapsos agudos.
Mas, como em qualquer condição crônica, não basta tratar a crise: é preciso manter o tratamento de base. A insuficiência cardíaca é controlada com uma combinação de medicamentos que melhoram prognóstico e reduzem hospitalizações: IECA ou BRA (reforma tributária e administrativa), betabloqueadores (disciplina fiscal), antagonistas de mineralocorticoides (gestão de passivos), inibidores de SGLT2 (inovação e diversificação produtiva) e controle hídrico (limite de endividamento). A economia precisa do mesmo: políticas permanentes que não apenas estabilizem, mas melhorem a função sistêmica. O problema é que governos, como pacientes indisciplinados, interrompem a medicação assim que os sintomas cedem, garantindo a próxima internação — ou crise.
Os casos clínico-políticos se multiplicam. O hipertenso gastador é o Estado com SRAA econômico cronicamente ativado: receita em alta, gastos em disparada, inflação latente. A conduta é clara: reforma tributária, teto de gastos e corte seletivo de despesas, com melhora em um ou dois anos se houver adesão. O anêmico letárgico é o Estado com pré-carga insuficiente pela carga tributária excessiva: precisa reduzir impostos e estimular a produção para recuperar vigor. O paciente em choque é o colapso agudo da arrecadação e do crédito, que exige injeção imediata de liquidez e suporte avançado até a estabilização. E há também o paciente autoimune, aquele em que o próprio sistema ataca os tecidos produtivos — a versão econômica é o excesso de intervenção que desestimula a livre iniciativa.
O prognóstico do paciente-Estado, na maior parte dos casos, é reservado. Sofre de arritmia estrutural, alternando ciclos de euforia fiscal com taquicardias inflacionárias, e bradicardias recessivas prolongadas. Confunde tratamento emergencial com terapia de base, mantém vasopressores fiscais e inotrópicos eleitorais na veia, enquanto recusa betabloqueadores e IECA institucionais. Persiste na crença de que mais pré-carga tributária sempre trará mais débito arrecadatório, ignorando que já vive no lado descendente da curva de Laffer. E insiste em manter o SRAA econômico ativado em caráter permanente, mesmo com sinais claros de remodelamento estrutural.
No leito das nações, vemos sintomas repetidos: inflação crônica, endividamento progressivo, descrédito internacional, fuga de capitais, corrosão da produtividade. A fisiologia ensina que nenhum sistema tolera excesso indefinido. Assim como um cardiologista se recusa a prescrever dobutamina para uso diário, um gestor responsável deveria se recusar a usar emissão monetária como política permanente. E, no entanto, há sempre quem confunda melhora momentânea de parâmetros com cura definitiva.
Talvez seja hora de médicos e economistas sentarem à mesma mesa, não para trocar receitas, mas para reconhecer que cuidam, cada um à sua maneira, de sistemas vivos e complexos. Ambos sabem que manter a homeostase exige ajustes finos, monitoramento constante e disciplina. E ambos sabem que, quando a descompensação é grave demais, resta apenas o transplante — seja de coração, seja de regime econômico.
E se, ao final, for preciso preencher a causa da morte do paciente-Estado, que não se escreva “morte súbita”. Registre-se com honestidade clínica: insuficiência crônica, por excesso de estímulo, falta de disciplina e alergia persistente à terapia de base. Uma doença evitável, mas, como tantas, negligenciada até que fosse tarde demais.
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