Feindstrafrecht: Juristas do abismo no Brasil
- Jorge Augusto Derviche Casagrande
- 14 de jun.
- 7 min de leitura
Visão histórica: Como o silêncio dos juristas e o ativismo do Judiciário prepararam o caminho da barbárie no Terceiro Reich e como isso é um alerta para o Brasil.
“Eu apenas aplicava a lei.”
Essas foram as palavras de Franz Schlegelberger, ex-secretário do Ministério da Justiça do Terceiro Reich, ao ser julgado em Nuremberg por crimes contra a humanidade. Tentou convencer o tribunal de que agia como técnico neutro, que apenas executava ordens e tentava “moderar” o regime de dentro.
Mas os documentos mostraram que seu trabalho resultou em outra coisa: pareceres que sustentavam leis raciais, decretos que legalizavam deportações e movimentações de judeus a campos de concentração, normas que institucionalizavam o chamado “Direito Penal do Inimigo”.
Schlegelberger não era um burocrata inocente — era um jurista da barbárie.
O que Schlegelberger construiu com pareceres técnicos foi, em essência, o que mais tarde o jurista Günther Jakobs conceituou como “Direito Penal do Inimigo” (Feindstrafrecht, 1985). Nessa lógica perversa, o indivíduo deixa de ser sujeito de direitos e passa a ser tratado como uma ameaça a ser neutralizada — não se pune o que ele fez, mas quem ele é ou o que pensa. O inimigo não é processado com garantias, mas aniquilado juridicamente em nome da proteção do Estado. Embora Jakobs tenha apresentado a teoria em tom crítico-descritivo, seu modelo foi prontamente apropriado por regimes autoritários e sistemas judiciais inclinados ao punitivismo de exceção. O Brasil, ao perseguir dissidentes ideológicos por meio de categorias penais elásticas — como “atos antidemocráticos” ou “desinformação” — parece ter absorvido o pior da teoria: um sistema de repressão dirigido não contra fatos, mas contra figuras ideológicas a serem silenciadas, inclusive parlamentares, jornalistas e cidadãos comuns.
E ninguém fez força para pará-lo. E assim o regime cresceu, forte, sob a aparência de “legalidade”.
No julgamento de Nuremberg, ficou claro que a elite jurídica alemã foi corresponsável pela legitimação do nazismo. A maioria dos juízes continuou atuando até o final da guerra; os conselhos de advogados não se insurgiram contra as leis raciais, nem contra a destruição das garantias processuais.
Hoje, vemos um silêncio semelhante por parte de Ordens dos Advogados, associações de magistrados e universidades, diante da flexibilização de direitos constitucionais básicos. A despolitização do debate jurídico — ou, pior, sua politização enviesada — gera um vazio de resistência, que permite a captura institucional por interpretações que violam a ordem democrática.
Mas como bem assentou o Tribunal de Nuremberg: a toga não isenta da responsabilidade pelo sangue vertido em nome da legalidade. Onde há consciência, há dever — e onde há dever, há responsabilização.
Essa perspectiva sustenta a “fórmula de Radbruch” (1946), elaborada pelo jurista alemão Gustav Radbruch após o colapso moral do positivismo jurídico sob o nazismo, segundo a qual uma lei intoleravelmente injusta não pode ser considerada Direito e, portanto, perde sua força, podendo as autoridades exercer o direito de resistência a aplicarem ou não.
Mas e quando o Direito já nem se baseia mais em leis injustas, mas sim em decisões sem lei alguma que as autorize?
Se Radbruch nos advertiu que a lei intoleravelmente injusta não deve ser considerada Direito, o que dizer então daquilo que é aplicado como Direito sem ser sequer Lei?
Estamos diante de um cenário ainda mais sombrio: a consolidação de um poder jurídico absoluto, em que sentenças se sustentam não em normas, mas em interpretações voluntaristas que se bastam a si mesmas.
Nessa configuração, a hermenêutica não serve para compreender a norma — mas para substituí-la, criando um sistema jurídico paralelo, imprevisível e imune a controles. Um Direito sem lei, sem limite e, portanto, sem freio.
A defesa de Schlegelberger representa o paradigma do jurista que abdica da consciência em nome do conforto institucional. Ele dizia estar apenas “moderando por dentro”, como se o simples fato de ainda haver um Ministério da Justiça — mesmo que submisso ao aparato genocida — lhe conferisse algum papel moral.
Mas como bem assentou o Tribunal de Nuremberg:
A toga não isenta da responsabilidade pelo sangue vertido em nome da legalidade; onde há consciência, há dever — e onde há dever, há responsabilização. Essa perspectiva sustenta a ‘fórmula de Radbruch’, segundo a qual lei intoleravelmente injusta não é direito.
Os novos Schlegelberger estão entre nós. Talvez não usem uniforme marrom, nem estampe a suástica, mas vestem terno e gravata e aplicam diretamente ou simplesmente apoiam aqueles que torcem as leis para criar o “direito penal do inimigo” de forma a dar ferramentas para que se instale o regime.
O novo Schlegelberger talvez diga que apenas cumpriu ordens — de instâncias superiores, do Zeitgeist, da moral pública — mas o resultado será o mesmo: um Judiciário que legitima o arbítrio com aparência de legalidade.
O alerta é claro: a omissão hoje é cumplicidade amanhã. E será lembrada como tal. Não esqueceremos.
A grande lição do “Judgment of the Judges” em Nuremberg foi clara: Não existe neutralidade possível quando o Direito é usado para oprimir.
A tentativa de dissociar a aplicação técnica da lei de suas consequências sociais e políticas é, em si, uma forma de adesão ao autoritarismo. A toga não inocenta; a caneta que assina sentenças injustas é tão culpada quanto a mão que empunha o chicote — e ambos se igualam, em responsabilidade histórica, aos juristas omissos que permitiram tal desalinhamento desde sua origem
Esse alerta ressurge com força no Brasil atual.
Hoje, os paralelos históricos são inevitáveis. A modernidade jurídica já não precisa de tanques — precisa apenas de decisões judiciais “técnicas” que suspendam direitos, suprimam garantias e calem vozes.
Em diversos momentos da história recente do Brasil, assistimos a:
· interpretações políticas da Constituição para fundamentar medidas de exceção (ex: censura prévia a veículos de imprensa sob pretexto de “desinformação”);
· abusos no uso de medidas cautelares penais sem fundamentação robusta;
· restrição de liberdades públicas com respaldo jurídico precário e jurisprudência ad hoc.
A construção jurisprudencial brasileira tem se aproximado de uma zona de exceção institucionalizada, como alertado por Lenio Streck:
“O problema não está apenas em violar a Constituição, mas em fazê-lo com argumentos hermenêuticos que a fazem parecer respeitada.”
(Lenio Streck alertou para o risco de institucionalização do estado de exceção, onde a aplicação da Constituição se torna um ato revolucionário).
Vivemos uma época em que o Judiciário se arvora como salvador da democracia, mas o faz ao custo da própria democracia constitucional.
Vimos nos últimos anos:
Prisão preventiva de cidadãos por manifestações políticas, com base em categorias penais vagas como “atos antidemocráticos”;
Busca e apreensão domiciliar por publicações em redes sociais;
Censura prévia contra veículos de imprensa e plataformas digitais;
Enquanto isso, traficantes com dezenas de quilos de entorpecentes, reincidentes e atuantes em facções armadas, são libertados por falta de fundamentação, vício formal ou aplicação benévola da lei.
Escalada em medidas de censura contra deputados por discursos feitos no exercício de seus mandatos, dentro do congresso nacional.
Exilados políticos.
Não se trata de defender excessos de um lado e rigor do outro. Trata-se de restabelecer a lógica penal mínima:
Que o sistema punitivo sirva para conter a violência real, e não para suprimir a dissidência ideológica.
Como nos anos 1930, na Alemanha, as classes jurídicas se retraem. Conselhos de classe silenciam. Associações de magistrados se omitem. A academia relativiza. E boa parte da advocacia naturaliza decisões autoritárias desde que não atinjam seu círculo.
Como bem alertou Hannah Arendt:
“O mal se torna banal quando todos apenas cumprem ordens sem pensar.”
A banalidade atual não está nos campos de concentração — está nos plenários, nos gabinetes, nas sentenças. Está também no silêncio cúmplice dos corredores da OAB. Ela habita a rotina de decisões e omissões que silenciam vozes, barbarizam pessoas que não cometem crimes tipificados e protegem os verdadeiros agressores da ordem pública.
O Judiciário brasileiro, que hoje falha na repressão do crime organizado, se mostra ágil e severo contra cidadãos que expressam suas convicções políticas — mesmo quando não incitam violência, nem praticam atos concretos.
O que se constrói é um modelo assimétrico de Justiça, em que a opinião é criminalizada, e a criminalidade — especialmente a violenta — é muitas vezes tolerada sob pretextos técnicos.
A história nos ensinou que a toga pode ser escudo da liberdade ou instrumento de repressão. E quando o jurista se cala, quando interpreta sem contexto, quando julga com medo ou conveniência — deixa de ser guardião da Constituição e se torna operador da tirania.
Hoje, no Brasil, é muito mais perigoso carregar uma opinião crítica do que 40 quilos de cocaína num avião voando em baixa altitude sobre a floresta amazônica.
Dramático? Sim.
Exagerado? Infelizmente, não.
Inaceitável? Sem dúvida.
Este é o verdadeiro perigo que o julgamento de Franz Schlegelberger expôs: o uso seletivo da técnica jurídica para transformar o Direito em ferramenta de dominação.
E mais uma vez, como em 1936, como em 1970, como em 2025 — há juristas que baixam os olhos, que se escondem atrás da neutralidade, ou que aplaudem a repressão desde que o alvo não seja o seu grupo.
Mas a História registra. E cobra. Eu sei que cobrarei.
E quando esse ciclo se encerrar — porque todos os ciclos autoritários um dia se encerram — os nomes daqueles que julgaram para punir ideias e proteger o crime real estarão gravados não em mármore, mas em vergonha.
O julgamento dos juízes em Nuremberg não foi apenas um processo penal. Foi um marco civilizacional que determinou que nenhum jurista pode alegar neutralidade quando sua ação ou omissão contribui para o colapso da dignidade humana.
Como bem sintetizou Hannah Arendt ao tratar da “banalidade do mal”, o verdadeiro horror não está nos monstros, mas na normalidade dos homens que preferem não pensar nas consequências de seus atos técnicos.
Feindstrafrecht: Se a toga pode ser usada como escudo, também pode ser usada como lâmina. E cabe a nós, juristas, definir se queremos ser os guardiões da Constituição — ou os operadores da sua destruição consentida.

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