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Entre Dados e Narrativas: o Bolsa Família, a Saúde Pública e o Dever Ético da Comunicação Científica

  • Foto do escritor: René Santos Neto
    René Santos Neto
  • 18 de jun.
  • 3 min de leitura

No artigo publicado recentemente na Folha de S.Paulo, o médico e divulgador científico Drauzio Varella celebra os efeitos do Programa Bolsa Família (PBF) sobre a saúde da população brasileira. Fundamentado em um estudo de grande porte recém-publicado na The Lancet Global Health, ele apresenta evidências de que o programa reduziu hospitalizações e mortes por transtornos por uso de substâncias (TUS), além de outros desfechos já amplamente reconhecidos, como a diminuição da mortalidade infantil e materna.

O entusiasmo de Varella é compreensível. Em um país devastado por desigualdades históricas e políticas públicas intermitentes, o PBF representa uma das mais bem-sucedidas iniciativas de transferência de renda no Sul Global. No entanto, a forma como o artigo trata o estudo mencionado carece de um elemento essencial à boa comunicação científica: a exposição honesta de seus limites.

A pesquisa de Toledo et al. (2025), conduzida com dados da Coorte Brasileira de 100 Milhões de Pessoas entre 2008 e 2015, aplicou métodos quase-experimentais e encontrou uma associação estatisticamente significativa entre o recebimento do PBF e a redução de hospitalizações por TUS (RR 0,83; IC95% 0,81–0,85). Mas o estudo, como reconhecem os próprios autores, apresenta limitações metodológicas importantes. A primeira delas é a subnotificação dos casos de hospitalização, especialmente em regiões onde o acesso a serviços de saúde é precário. Essa lacuna pode enviesar os resultados e subestimar a magnitude real dos transtornos.

Além disso, o banco de dados utilizado carece de variáveis clínicas e sociais cruciais, como histórico de comorbidades mentais, padrão de uso de substâncias e presença de apoio familiar ou comunitário. Isso abre espaço para confundimento residual — quando fatores não medidos influenciam tanto a exposição (recebimento do benefício) quanto o desfecho (hospitalização). Não mencionar essas fragilidades metodológicas pode induzir o leitor ao erro de interpretar causalidade onde há apenas correlação.

Outro ponto crítico é a restrição da análise às internações hospitalares. O estudo não contempla os muitos casos de TUS que não chegam ao sistema hospitalar — o que, em populações vulneráveis, pode ser a regra, e não a exceção. Também não inclui populações sem domicílio fixo, como pessoas em situação de rua, frequentemente invisibilizadas em registros administrativos.

Esses elementos não invalidam o estudo, tampouco negam os méritos do PBF. Muito pelo contrário: reforçam a necessidade de reconhecer que evidência científica e política pública devem caminhar com base em análises rigorosas e interpretações equilibradas. O entusiasmo na divulgação de achados não pode se sobrepor ao compromisso ético com a complexidade dos dados.

Drauzio Varella tem uma longa trajetória de defesa da ciência e dos direitos sociais. Mas, neste caso, a ausência de uma análise crítica mais detalhada enfraquece a força argumentativa do seu texto e deixa escapar a oportunidade de educar o público sobre como interpretar estudos científicos com sobriedade. Se o objetivo é combater o “palpite de botequim” com dados, como afirma o próprio autor, é fundamental ir além dos números e mergulhar também nas suas incertezas.

Mais do que nunca, precisamos de uma comunicação pública que valorize não apenas os resultados positivos da ciência, mas também sua capacidade de reconhecer seus limites. Porque é exatamente isso que confere à ciência sua autoridade moral e sua credibilidade social.


Referências bibliográficas:

  1. Toledo L, Fialho E, Alves F, Barreto ML, Patel V, Machado DB. Associations between the Bolsa Familia conditional cash transfer programme and substance use disorder hospitalisations: a quasi-experimental study of the 100 Million Brazilian Cohort. Lancet Glob Health. 2025;13:e508–16. doi: 10.1016/S2214-109X(24)00508-4

  2. Varella D. O impacto do Bolsa Família na saúde dos brasileiros. Folha de S.Paulo. 18 jun. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/drauziovarella/2025/06/o-impacto-do-bolsa-familia-na-saude-dos-brasileiros.shtml

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